CIDADANIA
Escrevi neste sábado sobre o esforço que o Supremo
Tribunal Federal tem feito, junto com a escória política do Brasil para
desmoralizar a Lava-Jato. Com muito mais profundidade, o jurista Jorge Béja
destrincha a soltura de Paulo Bernardo. Bela aula que divido com vocês...
DECISÃO
DE TOFFOLI É ABSOLUTAMENTE INÉDITA NA JUSTIÇA BRASILEIRA
Jorge Béja
Foi na edição de quarta-feira da Tribuna da Internet que tomei
conhecimento de que o ministro Dias Toffoli, do STF, havia expedido ordem para
que Paulo Bernardo, marido da senadora Gleisi Hoffmann e que se encontrava
preso por determinação do Juízo Federal da 6ª Vara Criminal de São Paulo, fosse
posto em liberdade. A notícia, cujas fontes eram o Estadão e a Folha, foi
publicada aqui na TI com o título “Toffoli tem uma recaída petista e manda
soltar Paulo Bernardo, seu amigo pessoal”. No rodapé da notícia, nosso editor,
jornalista Carlos Newton, registrou que o ministro tinha fortes relações com o
PT e que por isso deveria se julgar suspeito para decidir. E parodiando o ditado
popular que diz “onde passa um boi passa uma boiada”, Carlos Newton escreveu
que o ministro “abriu a porteira, agora o resto da boiada quer passar”.
Também li outras notícias, especialmente a que informava que o
próprio juiz federal, Paulo Bueno Azevedo, que havia decretado a prisão de
Paulo Bernardo, desaprovava a decisão do ministro, embora fosse seu dever
cumpri-la.
ISENÇÃO E FORO ÍNTIMO – A libertação pelo STF, de uma prisão decretada seis dias antes
por um juiz de primeira instância também me deixou surpreso. Não pela relação
do ministro Tóffoli com o PT, partido do qual foi advogado e ao qual Paulo
Bernardo é filiado e foi ministro petista.
Creio na isenção do ministro, que já votou no plenário do STF
contra pretensões petistas, muito embora um juiz jamais deveria julgar causa
que tenha como parte interessada pessoa para quem, no passado recente ou remoto
e antes de assumir a magistratura, já advogou e de quem foi advogado.
Mas sendo essa uma questão de foro íntimo, cabe exclusivamente
ao magistrado levantar sua própria suspeição para permitir que um outro colega
seu julgue o caso. Mas uma coisa é certa: a sensibilidade e a moral coletiva
não aceitam. E quando a questão diz respeito aos interesses coletivos, públicos
e nacionais, aí mesmo é que o povo desconfia ainda mais. Mas não será por isso
que vamos lançar desconfiança sobre o referido ministro.
LAÇOS ROMPIDOS – Toffoli foi advogado do PT por longo tempo. Também foi nomeado
Advogado-Geral da União pelo governo petista e pelo mesmo governo ascendeu à
Suprema Corte. Mas esses laços se romperam para o ministro Dias Toffoli. Tanto
romperam que desde que assumiu no STF, Toffoli nunca se julgou suspeito para
julgar causas do interesse do Partido dos Trabalhadores e de seus filiados
governistas, no Executivo e no Legislativo.
Minha surpresa e perplexidade foi a usurpação da uma instância.
Explica-se: quando uma prisão é feita por um delegado de polícia, compete ao
juiz criminal da comarca e que tenha
jurisdição sobre o delegado, apreciar e
decidir sobre a libertação do preso.
Quando a prisão é decretada por um juíz, aí é o tribunal local
ao qual pertence o juiz que decide sobre o recurso contra a prisão. E quando a
prisão é decretada por um tribunal (estadual ou federal), a competência para
examinar recurso contra a prisão é do Superior Tribunal de Justiça (STJ),
quando a fundamentação do recurso tem como base a(s) lei(s) e do Supremo
Tribunal Federal (STF), caso o fundamento esteja na Constituição Federal. É
assim. E assim consta do ordenamento jurídico nacional.
COMPETÊNCIA – No caso Paulo Bernardo, a instância competente para decidir
recurso contra a sua prisão era – e continua sendo – o Tribunal Regional
Federal (TRF) de São Paulo, a que está subordinado o juiz Paulo Bueno Azevedo,
da 6a. Vara Federal Criminal Especializada em Crimes Contra o Sistema
Financeiro Nacional e em Lavagem de Valores (nome comprido, mas é este mesmo) e
que decretou a prisão do ex-ministro.
Daí me veio a pergunta que fiz a mim mesmo: como pode o STF
mandar soltar uma pessoa que um juiz federal de São Paulo prendeu cinco ou seis
dias antes? E a competência do Tribunal Regional Federal de SP, que é a devida
instância, teria sido usurpada?
RECLAMAÇÃO – Só hoje é que consegui entender o motivo, muito pouco
ortodoxo, com todo o respeito. Nosso colega, leitor, articulista e também
advogado João Amaury Belem, me fez a gentileza de enviar a íntegra da decisão
do ministro Dias Toffoli. É uma decisão longa. Muito longa. Ao lê-la, constatei
que o ex-ministro Paulo Bernardo deu entrada diretamente no STF com uma
Reclamação que tomou o nº 24506 MC/SP. Reclamação não é recurso. Como a própria
palavra indica, é uma petição em que alguém reclama ao STF que decisão(ões)
e/ou súmula(s) da Suprema Corte foi ou foram contrariadas, desobedecidas,
desrespeitadas, afrontadas por ato administrativo ou decisão judicial.
Portanto, não é Habeas Corpus e também não é recurso nominado. É reclamação.
Puramente reclamação, como previsto no Regimento Interno no STF e na própria
Constituição (artigo 103-A, § 3º).
Nesse caso, a Reclamação não precisaria ser apreciada primeiro
pelo TRF de São Paulo. A Reclamação é para ser apresentada diretamente ao STF,
em razão do afrontamento, da desobediência de uma decisão proferida pelo
próprio STF e sempre relacionada diretamente ao reclamante, que não deve e não
pode ser desafiada ou desrespeitada.
SÍNTESE DA RECLAMAÇÃO – Mas de que reclamou Paulo Bernardo? O ex-ministro reclamou que o
juiz da 6a. Vara Federal de SP era incompetente para decidir o processo
criminal que culminou com sua prisão. Ele alegou “concurso necessário”, pois na
sua visão as denúncias a ele atribuídas eram condutas ligadas à sua esposa, a
senadora Gleisi Hoffmann que desfruta do privilegiado foro do STF.
Logo, no entender de Paulo Bernardo, ele pediu na Reclamação “a
suspensão da investigação do reclamante e da Senadora Gleisi Hoffmann no âmbito
dos autos de nº 5854-75-2016.403.6181”. E, logicamente, por se tratar de juiz
incompetente, ele também formulou pedido de soltura, sob o fundamento que
entendeu cabível.
A DECISÃO DE TOFFOLI – O ministro Dias Toffoli não aceitou a Reclamação de Paulo
Bernardo. E precisou de muitas páginas para fundamentar e, finalmente, assim
decidir: “Diante dessas circunstâncias, não vislumbro neste juízo de delibação,
situação prevista no artigo 102, inciso I, da CF (este artigo trata da
competência do STF), para justificar a liminar pleiteada”.
Dias Toffoli – mesmo sem haver a competência do STF – foi mais
além. E passou a examinar as razões que Paulo Bernardo apresentou para
demonstrar o que considerou ilegalidades da prisão. E a tal respeito, decidiu o
ministro: “Entretanto, vislumbro, na espécie, constrangimento ilegal passível
de ser reparado mediante concessão de Habeas Corpus de ofício. Nos termos do
artigo 654, § 2º, do Código de Processo Penal, os juízes e os tribunais têm
competência para expedir, de ofício, ordem de Habeas Corpus quando no curso de
processo, verificarem que alguém sofre ou está na iminência de sofrer coação
ilegal. Ante o exposto, indefiro a liminar requerida. Todavia, por reputar
configurado flagrante constrangimento ilegal, passível de correção por Habeas
Corpus de ofício, determino a revogação da prisão preventiva de Paulo Bernardo
Silva, decretada no processo 5854-75.2016.403.6181”.
Pronto. Sem precisar enfrentar a instância do TRF de São Paulo e
por via oblíqua, eis que a Reclamação que apresentou ao STF não foi aceita no
tocante ao mérito da competência para tirar das mãos do juiz paulista o
processo que o levou à prisão, Paulo Bernardo conseguiu que o STF, por seu
ministro Dias Toffoli, o libertasse.
LEI E RAZOABILIDADE – Realmente o artigo 654, § 2º do CPP diz: “Os juízes e os
tribunais têm competência para expedir de ofício ordem de habeas corpus, quando
no curso do processo verificarem que alguém sofre ou está na iminência de
sofrer coação ilegal”.
Embora o comando deste artigo seja seco, é plausível e razoável
interpretar que Habeas Corpus de ofício somente é para ser dado quando os
juízes e os tribunais também tiverem competência para decidir o mérito da
causa. Fora disso, ou seja, sem esta competência, juízes e tribunais devem
remeter os autos ao juízo competente. Isto é, declinar da competência e, sem
libertar o réu preso, enviar os autos do processo para a autoridade ou órgão
judicial competente. A este, sim, é quem competirá decidir sobre a libertação
do preso. E no caso Paulo Bernardo, o órgão competente era –e continua sendo –
o Tribunal Regional Federal de São Paulo. Caso contrário, um Habeas Corpus de
réu preso pela Justiça do RJ e apresentado ao Tribunal de Justiça do Estado do
Acre será recusado, evidentemente, por incompetência territorial. Mas o TJ do
Acre poderá mandar soltar o preso, mediante Habeas Corpus de ofício! Basta que
os fundamentos sejam fortes e a prisão se mostre escancaradamente injusta.
FATO INÉDITO – Isso nunca aconteceu na história do Judiciário nacional. Mas
quem garante que doravante não acontecerá? No caso Paulo Bernardo, o ministro
Toffoli declarou a incompetência do STF para julgar o mérito. Não, para
conceder o HC de ofício. E nem enviou os autos ao TRF paulista para que os
recebesse na classe-categoria de Habeas Corpus. E os retém no STF, com o réu já
libertado.
Não vai aqui nenhuma censura à decisão do ministro. O propósito
deste modesto artigo é provocar o debate sobre tão relevante tema. No
ordenamento jurídico não há outro meio de levar a questão da prisão do Paulo
Bernardo à analise pelo STF. Por enquanto, por ora. E a via escolhida, a via
oblíqua, equivaleu a um bem sucedido triplo mortal carpado, como fazem os
especialistas em saltos ornamentais.
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